O setor elétrico quer a internet no seu modelo de negócio

11/01/2011

A chama smart grid pode trazer as operadoras elétricas para o tabuleiro da oferta nacional de banda larga.

O governo brasileiro começa a considerar, seriamente, a criação de uma rede inteligente (RI) de distribuição de energia no País -- a chamada smart grid. A primeira ação concreta é a substituição dos relógios de luz das casas por medidores eletrônicos, cuja especificação será tema de Audiência Pública programada para 26 de janeiro.

Também para o primeiro semestre de 2011está prevista a conclusão de um estudo do Ministério das Minas e Energia (MME) sobre a implantação da smart grid, processo que pode levar dez anos e representa uma mudança de paradigma com grande impacto nos setores de TI e de telecomunicações, além de investimentos altos em hardware, automação industrial e em muito, muito software.

Com isso, o Brasil entra o ano novo com três planos ambiciosos para levar infraestrutura de comunicação de dados à última milha, ou seja, à casa dos cidadãos: o Plano Nacional de Banda Larga, a TV digital e a ponta doméstica da smart grid. Mas nenhum deles, até agora, parece levar o outro em consideração.

Há várias estimativas sobre o montante dos investimentos necessários para a smart grid nacional, que podem chegar a mais de 30 bilhões de reais ao longo de uma década. Ninguém, contudo, arrisca um número definitivo. A conta mais frequente leva em consideração que existem, atualmente, 63 milhões de medidores em residências ou estabelecimentos comerciais de baixa potência, alvos do projeto, uma vez que o setor industrial já tem medidores eletrônicos. Desses, a intenção da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é trocar 45 milhões de unidades, em uma primeira etapa.

Se, além da substituição do relógio por “smart meters”, cada um se ligar a uma conexão de dados para transmitir a distribuidora as informações de consumo e desempenho da energia, teremos a telemedição implantada. Nesse caso, cada ponto/medidor, incluindo instalação, hardware, software e rede, está orçado entre 200 reais e 500 reais, dependendo da fonte. Multiplicados por 63 milhões de medidores, esse valores vão resultar em desembolsos totais de 12,6 bilhões de reais a 31,5 bilhões de reais. Ou, apenas para os 45 milhões de medidores iniciais, de 9 bilhões a 22,5 bilhões de reais.

A participação dos produtos e serviços de TI nessa iniciativa é calculada, em geral, em torno de 15% desse montante; e de telecomunicações, em outros 15%, segundo o gerente de soluções para utilities da IBM Brasil, Gardner Vieira. São 1,9 bilhão de reais a 4,7 bilhões de reais. Uma quantia nada desprezível e que pode ser ainda maior, porque apenas adotar o uso de medidor eletrônico, mesmo quando associado à telemedição -- a transmissão de dados do medidor à distribuidora – não é o sufi ciente para a caracterização de uma smart grid, ou rede inteligente.
O conceito de RI é mais complexo. Cobre a gestão integrada de todo o sistema: controle de demanda, automação de tarefas, corte, religamento e assistência técnica de forma remota, distribuição dinâmica... Tecnologias que permitem, entre outras aplicações, a entrada, na rede, da energia acumulada por pessoas que façam captação solar ou eólica, ou, ainda, o abastecimento de carros elétricos. E, no limite, até a capacidade de conectar a rede pública, via tomadas inteligentes (smart plugs), aos equipamentos domésticos, para que o usuário possa ver, entender, gerir e programar seu consumo máquina a máquina, detalhado em pequenos displays ou na tela de uma TV digital.

"A smart grid é um processo tecnológico muito abrangente", diz o diretor da Aneel, André da Nóbrega. "Permite aos consumidores e à distribuidora terem maior gestão sobre a distribuição de energia elétrica. As pessoas podem acompanhar seu consumo de energia e, com esse conhecimento, promover a eficiência. É a internet do setor elétrico, porque abre uma possibilidade de comunicação muito grande". A construção de uma base de TI e telecom para essa rede de distribuição significa que até a força de trabalho do setor elétrico vai exigir uma nova formação, para se tornar, no novo cenário, um profissional de TI, destaca o diretor do Departamento de Gestão de Setor Elétrico do MME, Marcos Franco Moreira Cargo.

Os benefícios esperados incluem vantagens evidentes para o planeta. O Plano País consiga uma redução no consumo final de energia elétrica da ordem de 5% em 2030, por meio de medidas indutoras de eficiência energética, potencializadas com a adoção de tecnologias de RI. Atualmente, o Brasil precisa de 6 mil Megawatt/ano para atender ao sistema, que é desenhado para conseguir suportar o pico da demanda. Se esse ápice diminui, a estrutura pode ser redimensionada em bases mais enxutas. Na Califórnia (EUA), a adoção de smart grid cortou em 15% o total de pico, diz Nóbrega. E, na Flórida, apenas a economia com o corte e religamento remoto, eliminando a necessidade de deslocamento de veículos, pagou o investimento da Florida Power.

A questão tarifária
Uma rede dessas vai exigir novos modelos de negócios, destaca Nóbrega. Duas principais frentes estão debruçadas sobre o que pode vir a ser um Programa Brasileiro de Rede Elétrica Inteligente e as suas políticas públicas: um grupo de trabalho criado pelo MME, formado por representantes do ministério e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); e um consórcio de empresas formado em uma chamada técnica da Aneel (no 011/2010), parte do programa de P&D da área elétrica, bancado por 1% da receita bruta dos agentes (ressarcido às empresas se os projetos forem considerados relevantes). O primeiro grupo pretende apresentar sua conclusão no primeiro semestre de 2011. O segundo estava, em dezembro, preparando-se para iniciar a contratação das universidades e dos institutos que desenvolverão a pesquisa.

Moreira Cargo integra o grupo de trabalho criado em abril de 2010, pela portaria 040 do MME. “O grupo está fazendo o levantamento do estado da arte no mundo, com o objetivo de sinalizar qual será a política brasileira para smart grid”, resume. Na opinião dele, o Brasil precisa dar o passo à frente, representado pelo smart grid, para cobrir uma defasagem tecnológica na área de distribuição acumulada ao longo dos anos. “Temos excelência em geração e transmissão, mas falta muito em distribuição.”

O GT do ministério se reúne semanalmente desde abril e, em menor ritmo, em novembro e dezembro, por conta dos trâmites de transmissão de governo. Inicialmente, estão no grupo a Aneel, a Eletrobrás, o Operador Nacional do Sistema (ONS), o Centro de Pesquisa de Energia Elétrica (Cepel) e, de fora do MME, a Anatel. Mas Moreira Cargo adianta que há intenção de convidar também os Ministérios da Ciência e Tecnologia, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic).

Entre os desafios básicos a serem enfrentados, o técnico do ministério ressalta a equação de financiamento, ou a relação entre tarifa e necessidade de fazer os investimentos de smart grid. De um lado, considerando a renda média do brasileiro, ele acredita que a tarifa precise ter um peso menor.

Nesse sentido, a médio prazo, as novas tecnologias de gestão, automação e controle remoto da rede prometem reduzir os custos das empresas e os gastos do consumidor. Sem falar na queda brutal das chamadas perdas não técnicas (ou seja, o furto de energia ou “gato”), da ordem de 10%. Parte dessa perda (4% em 10%) é repassada à tarifa, e parte (outros 4%) à distribuidora, conforme acordo regulatório do setor. Mas tudo isso são ganhos futuros. De imediato, não se poderia transferir para a tarifa a pressão dos investimentos.

No Texas (EUA), Moreira Cargo conta que o governo de Barack Obama doou cerca de 300 milhões de dólares para cada concessionária, com o compromisso de que a empresa aplicasse no projeto contrapartida do mesmo valor.

“Cada país está fazendo de um jeito”, diz. No Brasil, montar essa engenharia pode passar inclusive pela ampliação do escopo de prestação de serviços das elétricas para abarcar comunicação de dados, enfrentando os interesses das operadoras de telecom. Um dos desafios postos para o novo governo Dilma, que terá, em 2014, algumas distribuidoras em estágio de renovação de contratos.

Na Austrália, esse compartilhamento de dados com a energia já acontece, fruto de um projeto avançado de universalização da banda larga. “Temos de juntar as duas coisas para ver como a smart grid pode trazer benefícios para o consumidor”, defende o diretor do MME.
Elétricas na banda larga

Se vender serviços de dados, aproveitando a conexão do consumidor ao distribuidor, for mesmo considerado como alternativa para ajudar a financiar a demanda de investimentos do projeto, muitas leis e normas terão de ser alteradas. Hoje, por lei, apenas as concessionárias de telecom podem prestar esse serviço. “Fazer smart grid é complicado devido ao valor alto dos investimentos, e porque nem tudo é regulado ou autorizado para o setor elétrico. Será preciso estudar a atualização da regulação e estabelecer políticas públicas para viabilizar o negócio.
Atualmente, as distribuidoras brasileiras só podem fornecer energia e, desse modo, a proposta não fecha financeiramente. Elas teriam de poder oferecer também telecomunicações”, avalia Adriano Bonini, da área de inovação tecnológica da CPFL. Se a infraestrutura de TI e de telecom da RI puder ser aproveitada para novos negócios, na opinião dele, a mudança “começa a compensar”.

Na verdade, para transmitir apenas os dados coletados pelos medidores eletrônicos para a distribuidora, basta uma rede banda estreita. Um dos tipos de comunicação mais citados nesse caso é o Zigbee, nome que faz referência ao zigue-zague das abelhas, para fazer a ligação do medidor aos concentradores mais próximos, na rua -- de onde seguiriam até a central de operações sobre redes mais parrudas -- GPRS (celular), fibra óptica, PLC, ou qualquer outra.
Mas uma proposta efetiva de smart grid, com alto nível de automação da rede, para assegurar controle de fases, melhorias de serviços, integração a sistemas de gestão, cerca de 300 milhões de dólares para cada concessionária, com o compromisso de que a empresa aplicasse no projeto contrapartida do mesmo valor.

A CPFL é uma das empresas do setor que atendeu à chamada técnica 011/2010 da Aneel para o Programa Brasileiro de Rede Elétrica Inteligente (RI), publicada no Diário Oficial do dia 24 de agosto de 2010 -- o outro centro de estudos do tema. A chamada lembra que o Projeto de Lei no 603, de 2003, prevê incentivos a fontes alternativas renováveis e biocombustíveis, aos veículos elétricos e híbridos, ao armazenamento de energia elétrica e ao uso do hidrogênio e do ar comprimido para fins energéticos.

A smart grid contemplaria, portanto, “a possibilidade de as residências instalarem geração distribuída e comercializarem a energia excedente [solar, por exemplo, o que irá demandar a definição de uma tarifa adequada para essa forma de comercialização de energia”. Ou seja, por estar sobre uma conexão bidirecional, interativa, quem tiver energia solar poderia inseri-la na rede e abater o valor do que entregou da sua conta.

Além disso, o texto da chamada alerta para as cobranças sociais. “Atualmente, os consumidores têm exigido cada vez mais confiabilidade e qualidade da energia elétrica, fato que ficou bastante evidente 2009. A implantação de RI atenderia a essa demanda e permitiria o estabelecimento de um canal de aferição da qualidade da energia elétrica para a Aneel, diminuindo a assimetria de informação.” Além de quatro níveis tarifários, as especificações da agência para os medidores eletrônicos devem ser capazes de medir tensão, interrupções e outros critérios de qualidade.

Os componentes da RI
Segundo Bonini, o estudo financiado pela chamada técnica dividiu a análise da implantação de RI em seis blocos de estudo, um deles dedicado à TI e telecom e outro à automação de rede. Os outros cobrem medição; geração distribuída e veículos elétricos; interface com política pública e regulação; perspectiva do consumidor. Na área de TI, especificamente, os investimentos são equivalentes aos necessários para criar, no setor, uma estrutura similar a do sistema bancário, compara o técnico da CPFL. As empresas vão integrar aplicações de segurança, de controle, de Business Intelligence e Business Analytics, CRM e billiing, ao legado do backoffice das empresas. E devem ser capazes de processar, armazenar e gerenciar com inteligência, gerando valor às milhares de informações que vêm dos medidores.

Para se ter uma ideia, o relógio atual faz a medição (conferida in loco por um técnico), uma vez por mês. O novo modelo mede o consumo a cada 15 minutos, registrando cerca de 20 variáveis diferentes (temperatura, qualidade de tensão etc.). Significa algo em torno de 10 milhões de variáveis por ano, nas contas do diretor de utilities da SAP, Alejandro Erro. Vezes 63 milhões, chegamos a algo como 630 trilhões, que, num crescimento de 4% ao ano na base clientes, atingiria facilmente, em uma década, a casa do quatrilhão de medições armazenadas.
O bloco de automação de rede analisa as ferramentas para administração e gerenciamento da rede. Na prática, equipamentos e software que vão fazer manobras críticas na rede com comandos automatizados e a distância.

Hoje, a pessoa liga no SAC ou no call center, avisa que tem um problema e o caminhão sai para atender. Em caso de desligamento ou religamento da rede também: o técnico precisa se deslocar à casa do consumidor. Com os software de automação da rede, tudo isso pode ser detectado e identificado online por soluções que ainda saberiam isolar a parte com problema, para não comprometer o fornecimento fora do trecho avariado. Tudo remoto.

“Em telecom, será preciso ter redes de telecomunicações de qualidade, distribuídas nacionalmente e a um preço que não onere o consumidor. Tenho que levar um ponto de comunicação à casa dele, e não posso dobrar a conta de luz. Ou ele vai pagar algo mais, e eu oferecer mais serviços”, diz Bonini.

Já tocam projetos-piloto de telemedição e smart grid as distribuidoras Light (no Rio de Janeiro e, com a Cemig, em Sete Lagoas Minas Gerais); Eletrobrás, em Parintins (AM); e AES Eletropaulo na capital paulista, no bairro do Ipiranga. Para Luiz José Hernandes Jr., da área de mercado corporativo do CPqD, que integra essas experiências (com exceção da paulistana), a smart grid vai permitir criar as home area networks (HANs), afinal, uma tecnologia disruptiva, no sentido de quebra de paradigmas. Imagine-se aplicações de telemedicina, por exemplo, usando essa HAN para monitorar a saúde das pessoas.

Site: Computerworld
Data: 10/01/2011
Hora: 13h38
Seção: Negócios
Autor: Verônica Couto
Link: http://computerworld.uol.com.br/negocios/2011/01/10/o-setor-eletrico-quer-a-internet-no-seu-modelo-de-negocio/paginador/pagina_2