* Por Tito Ryff
"Prezado leitor, você sabe o que é um cnidário? Ou o filo dos platelmintos? Saberia definir o significado de silepse, assíndeto, zeugma, anáfora, catacrese ou sinédoque? Provavelmente não. Mas não se sinta diminuido com isso. A esmagadora maioria dos poucos brasileiros que passaram por uma universidade, excetuados os especialistas em botânica, biologia, zootecnia ou gramática, não saberia responder corretamente a essas indagações. No entanto, questões como essas são apresentadas, às centenas, anualmente, a crianças brasileiras na faixa de 12 a 15 anos. E, se as respostas não fossem satisfatórias, correm o risco de serem reprovadas.
Muito outros exemplos poderiam ser dados para demonstrar o absurdo do ensino que é ministrado às nossas crianças. Herança, talvez, do enciclopedismo francês que moldou o ensino dos países de lingua latina. O currículo das escolas brasileiras tem produzido um alto índice de evasão escolar ente os alunos de condição social mais modesta. Às vezes, procuro colocar-me na situação de um pai favelado a quem o filho pede que lheexplique o que é autotrofia. Imagino a sensação de impotência e vergonha dopai e a decepção do filho, numa fase em que os pais, com suas qualidades e defeitos, servem de paradigma. Daí para a decisão de retirar a criança da escola em razão da inutilidade do ensino que lhe é ministrado, e de sua inadequação à realidade social da família, é apenas um passo. Quem atiraria a primeira pedra?
Quando se olha para o futuro da sociedade brasileira, o que mais preocupa é ver milhões de brasileiros deixarem os bancos escolares sem terem completado o 1º grau e, portanto, sem o preparo intelectual mínimo necessário para continuar adquirindo conhecimento pela vida afora. Pode-se estimar que, atualmente, não mais do que 20% da população adulta do país está em condições de absorver adequadamente o fluxo constante de novas informações, de todo o tipo, que caracterizam a sociedade moderna e que são necessárias, seja para o exercício pleno da cidadania, seja para o aprendizado de novas técnicasz de gerência e deprodução. Esta marginalização impiedosa tem origem nos bancos escolares, em função do ensino massacrante que impõe à criança a absorção de uma massa excessiva de informações complexas, comos e a formação de um indivíduo tivesse que se concentrar entre os 6 e os 18 anos de idade. Não faz sentido exigir de crianças de 12 anos conhecimentos científicos que só seriam úteis a vestibulandos de botânica, biologia ou zootecnia ou noções de gramática que só servem aos estudiosos da lógica e da estruturada língua, e não àqueles que ao longo da vida terão simplesmente que se fazer entender no idioma português. É por essas e outras que, quando nos deparamos com um profissional, de qualquer área, que saiba escrever de forma apenas correta e inteligível, levantamos as mãos para o céu em agradecimento ao Senhor.
Não tenho dúvida, por tudo isso, de que a reforma mais importante a ser feita no país, no momento, é a da educação. O currículo escolar deveria ser substancialemente simplificado. Para ingressar na vida adulta, o aluno deve ter noções básicas de história e geografia, para situar-se adequadamente no mundo em que vive; conhecer matemática e português na medida suficiente para aprender a raciocinar logicamente e para escrever com clareza e correção; saber como foi a evolução técnica e científica da humanidade; e, finalmente, ser preparado para a vida em sociedade, com suas regras básicas de convívio e respeito mútuo que, infelizmente, muitos de nós desconhecemos.
O currículo simplificado, sem os excessos e desperdícios da formação enciclopedista, tornará o jovem que termina a escola secundária apto não apenas a viver em sociedade e a ingressar na universidade ou numa escola técnica, mas, sobretudo, a continuar aprendendo pelo resto da vida, pois o que caracteriza a sociedade moderna é a aquisição permanente de conhecimentos. Num país que valorizasse aos seus recursos humanos, as empresas, os meios de comunicação, os cursos de extensão universitária etodos os outros instrumentos de que dispõe a sociedade para difundir conhecimento e cultura seriam mobilizados para o processo de educação permanente do adulto.
A nova Lei de Diretrizes e Bases do Ensino acha-se em discussão no Congresso Nacional. A responsabiliadde de deputados e senadores é enorme. Não há nenhum fator mais importante de progresso econômico e social, nenhum instrumento mais poderoso de mudança do que a educação de um povo. Ela pode atender às necessidades e interesses de uma minoria ou representar, ao contrário, uma lavanca efetiva de ascensão social para a imensa maioria da populaçaõ. Por isso, creio que, no bojo da nova lei, quatro inicitaivasdeveriam ser contempladas: 1) a simplificação substancial do currículo escolar, pelo menos nos primeiros oito anos de ensino; 2) a regulamentação do ensino profissionalizante; 3) a introdução de legislação específica que incentive as empresas a investirem na educação e na formação profissional de seus empregados; e 4) a ampliação da autonomia dos estados da Federação para elaborarem os seus próprios currículos escolares do 1º e 2° graus, ressalvados, é claro, alguns princípios básicos como o ensino da língua portuguesa, de nossa história etc. Esta última providência nos parece particularmente promissora por duas razões: não faz sentido ter-se uma educação similar do Oiapoque ao Chuí e, com o tempo, a diversificação de experiências pedagógicas enriquecerá nossa compreensão do problema da educação em nosso país e nos permitirá avaliar melhor o que nos convém. Onde e por quê.
Estou convencido de que a reforma do ensino brasileiro e sua adequação à nossa realidade sócio-econômica é questão de salvação nacional. E não exagero. Não se pode imaginar que o Brasil subsista como nação una e soberana, num mundo em rápida transformação, se 80% de sua população adulta permanecer à margem dos processos de informação (e decodificação da informação) que caracterizam a sociedade moderna A capacidade de selecionar e interpretar informações é indispensável ao exercício pleno da cidadania e ao domínio das técnicas que caracterizarão os sistemas de produção do futuro. A nação que não puder prover educação adequada a seu povo ficará relegada eternamente a um plano inferior, com todas as conseqüências políticas, sociais e econômicas daí decorrentes. No domínio da educação, como em tantos outros, nós precisamos de um atalho. É ilusório imaginar que poderemos ministrar a 70 milhões de jovens o ensino enciclopedista, herança do iluminismo, que caracteriza o sistema educacional da França, por exemplo. Sejamos modestos. Contentemo-nos em preparar nossas crianças para serem cidadãos responsáveis socialmente, capazes de entender o mundo e o país em que vivem e de contribuir, ainda que às vezes modestamente, para a construção de uma nação próspera. justa e democrática.
Fonte: Jornal do Brasil
Editoria: Opinião
Autor: Tito Ryff
Data: 02/03/1993