Marco Civil: considerações legais sobre a minuta do Decreto

11/03/2016

Em artigo para o portal Convergência Digital, os advogados da Pinheiro Neto, André Zonaro Giacchetta e Pamela Gabrielle Meneguetti, fazem uma avaliação da minuta de decreto, lançada pelo Ministério da Justiça, em parceria com os Ministérios das Comunicações e da Cultura, que pretende regulamentar o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965), que já está em vigor desde 23.6.2014. A consulta pública foi encerrada em 29.2.2016 e um texto final será elaborado a partir das contribuições obtidas, seguindo a mesma dinâmica participativa que deu origem ao Marco Civil da Internet.

A minuta do decreto disponibilizada pelo Ministério da Justiça aborda principalmente as exceções à neutralidade de rede (Capítulo II), aspectos relacionados à proteção e padrões técnicos de segurança para a guarda de dados por provedores de conexão e de aplicações de Internet (Capítulo III), além de tratar da fiscalização e transparência (Capítulo IV). O presente artigo tem por objetivo apresentar breves considerações sobre a minuta do decreto, sem a pretensão de esgotar os temas abordados.

No que se refere à neutralidade de rede houve pouca inovação em relação ao que já havia sido estabelecido no Marco Civil da Internet. O tema foi tratado de forma genérica, com conceitos abertos e abstratos (por exemplo, “preservação do caráter público e irrestrito do acesso à Internet”).

A impressão inicial é de que não houve um posicionamento claro quanto ao tema e principais polêmicas suscitadas, como o zero rating, o que dará margem para interpretação pela ANATEL a partir dos princípios abstratos previstos no Marco Civil e no Decreto. De qualquer forma, foram melhor especificadas as exceções à neutralidade decorrentes de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e priorização de serviços de emergência.

A Seção I do Capítulo III detalha as hipóteses e dados que poderão ser requeridos por autoridades administrativas independentemente de ordem judicial, nos termos do artigo 10, § 3º, do Marco Civil. Para essa hipótese específica, a minuta do decreto prevê que a autoridade deverá indicar o fundamento legal de sua competência e motivação para o pedido de acesso a dados cadastrais.

Poderão ser requeridos apenas dados cadastrais, definidos como “filiação, endereço e qualificação pessoal, entendida como nome, prenome, estado civil e profissão do usuário.” Prevê ainda a publicação de relatórios estatísticos anuais pela autoridade máxima de cada órgão público federal contendo número de pedidos, provedores cujo pedido foi destinado e número de pedidos atendidos e não atendidos, ou seja, uma espécie de relatório de transparência das entidades públicas.

A análise do tema evidencia que não houve grande avanço na regulamentação dos poderes das autoridades administrativas. Apesar da melhor especificação dos dados que poderão ser requeridos, a principal controvérsia relativa ao tema não foi devidamente abordada.

O decreto deveria tratar da interpretação do trecho “na forma da lei” previsto no artigo 10, § 3º, do Marco Civil, especificando em quais crimes as autoridades administrativas poderão requerer os referidos dados sem ordem judicial, ou seja, se essa exceção é válida somente para investigações relacionadas a atos que possam caracterizar lavagem de dinheiro e crimes de organização criminosa (cujas leis anteriores ao Marco Civil já previam tal exceção de forma específica) ou para todo e qualquer crime.  Poderia também ser especificado se o termo “endereço” abrange apenas o endereço físico do usuário ou também o endereço eletrônico (e-mail).

A Seção II do Capítulo III prevê diretrizes técnicas de segurança para a guarda, armazenamento e tratamento de dados, estabelecendo que o Comitê Gestor da Internet (CGI) poderá promover estudos e recomendar outros padrões. Ao estabelecer que os padrões técnicos previstos deverão ser empregados em relação a registros, dados pessoais e comunicações privadas, o decreto amplia a obrigação prevista no artigo 15 do Marco Civil da Internet, que era restrita à guarda dos registros de acesso a aplicações de Internet.

Essa Seção também prevê uma definição muito ampla de dados pessoais, mais abrangente em relação àquela proposta no Anteprojeto de Proteção de Dados, que também foi submetido a consulta pública pelo próprio Ministério da Justiça. A minuta considera dado pessoal todo “dado relacionado à pessoa natural identificada ou identificável, inclusive a partir de números identificativos, dados locacionais ou identificadores eletrônicos, compreendendo inclusive registros de conexão e acesso a aplicações e o conteúdo de comunicações privadas.”

Além do equívoco em se considerar o “conteúdo de comunicações privadas” dentro do conceito de dado pessoal e de adotar uma definição que inclui praticamente qualquer dado, não se compreende os motivos que levam o Ministério da Justiça a adotar definições diferentes de dado pessoal para fins tão conexos como aqueles tratados no Marco Civil e no Anteprojeto de Proteção de Dados. A ausência de sintonia entre as definições pode vir a prejudicar a consistência da legislação brasileira e a efetiva tutela da privacidade e dos dados pessoais, em prejuízo dos direitos dos próprios usuários.

*Sobre o tema: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI220995,11049 Privacidade+do+usuario+vs+investigacao+criminal+A+extensao+e+alcance.

Ademais, o decreto poderia estabelecer nessa Seção se o prazo de 6 (seis) meses para a guarda dos registros de acesso a aplicações de Internet é máximo ou mínimo, ou seja, se os registros poderão ser mantidos além do prazo de 6 meses ou, pelo contrário, se devem ser obrigatoriamente eliminados após tal período em respeito à privacidade do usuário.

Outra questão relevante que deixou de ser objeto da minuta do decreto foi o artigo 19 do Marco Civil e mais precisamente o que se entende por “identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material”.

Conforme mencionado no próprio relatório do Projeto de Lei que culminou no Marco Civil da Internet, de autoria do Deputado Federal ALESSANDRO MOLON, tal identificação deve corresponder ao URL específico do conteúdo.  Em linha com o entendimento manifestado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça,  caberia ao decreto deixar claro que a identificação do conteúdo a ser removido deve se dar por meio de sua respectiva URL.

*“(...) Mantivemos, igualmente, a determinação de que tal ordem judicial deva identificar clara e especificamente o conteúdo apontado como infringente, com o objetivo de evitar decisões judiciais genéricas que possam ter efeito prejudicial à liberdade de expressão, como, por exemplo, o bloqueio de um serviço inteiro – e não apenas do conteúdo infringente. Evita-se, assim, que um blog, ou um portal de notícias, seja completamente indisponibilizado por conta de um comentário em uma postagem, por exemplo.
Evitam-se também ordens genéricas de supressão de conteúdo, com a obrigação de que a ordem judicial indique de forma clara e específica o conteúdo apontado como infringente, de forma a permitir a localização inequívoca do material – ou seja, há a necessidade de se indicar o hyperlink específico relacionado ao material considerado infringente. Nesse aspecto, fizemos ainda constar expressamente do início do dispositivo que esta salvaguarda tem o intuito de assegurar a liberdade de expressão e de impedir a censura, explicitando a preocupação da manutenção da Internet como um espaço de livre e plena expressão. Também enfatizamos que a responsabilidade de que trata o caput do artigo tem natureza civil. (...)” Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1240240&filename=Tramitacao-PL+2126/2011. 
  “DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS. REDE SOCIAL. ORKUT. RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR (ADMINISTRADOR). INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO. ESTRUTURA DA REDE E COMPORTAMENTO DO PROVEDOR QUE NÃO CONTRIBUÍRAM PARA A VIOLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS. RESPONSABILIDADES CONTRIBUTIVA E VICÁRIA. NÃO APLICAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE DANOS QUE POSSAM SER EXTRAÍDOS DA CAUSA DE PEDIR. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INDICAÇÃO DE URL'S. NECESSIDADE. APONTAMENTO DOS IP'S. OBRIGAÇÃO DO PROVEDOR. ASTREINTES. VALOR. AJUSTE.
(...)
8. Quanto à obrigação de fazer - retirada de páginas da rede social indicada -, a parte autora também juntou à inicial outros documentos que contêm, de forma genérica, URLs de comunidades virtuais, sem a indicação precisa do endereço interno das páginas nas quais os atos ilícitos estariam sendo praticados. Nessas circunstâncias, a jurisprudência da Segunda Seção afasta a obrigação do provedor, nos termos do que ficou decidido na Rcl 5.072/AC, Rel. p/ acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 4/6/2014. (...)” (STJ, REsp 1512647/MG, Segunda Seção, Relator: Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 13.5.2015). No mesmo sentido: “DIREITO CIVIL. AÇÃO CAUTELAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROVEDOR DE BLOGs. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. INFORMAÇÃO DO URL PELO OFENDIDO.
1. O provedor de hospedagem de blogs não está obrigado a realizar a prévia fiscalização das informações que neles circulam. Assim, não necessita de obter dados relativos aos conteúdos veiculados, mas apenas referentes aos autores dos blogs.

Em tema de fiscalização e transparência, a minuta do decreto estabelece o óbvio ao especificar as atribuições da ANATEL, da SENACON, do CADE e de outros órgãos dentro de suas respectivas esferas de competência. Não foi estabelecido, porém, um procedimento específico para a apuração das infrações aos artigos 10 e 11 do Marco Civil, tampouco critérios para a apuração e aplicação das penalidades previstas no artigo 12. Essa omissão dá margem para discricionariedade e abusos dos órgãos fiscalizatórios. Ademais, o período de vacatio legis estabelecido (45 dias) também parece não ser adequado para as adaptações técnicas necessárias.

Em suma, o que se constata é que a minuta de decreto submetida à consulta pública pelo Ministério da Justiça não abordou todos os temas que deveriam ser objeto de regulamentação. Mesmo aqueles devidamente abordados não o foram na profundidade e extensão necessária, como é o caso dos poderes das autoridades administrativas e as exceções à neutralidade de rede.

Embora essas omissões sejam relevantes, o principal aspecto negativo da minuta parece ser a ampla definição proposta para dados pessoais, que destoa em relação àquela apresentada pelo próprio Ministério da Justiça no Anteprojeto de Proteção de Dados. Tratando-se de projetos que possuem inegável conexão, não se pode admitir a existência de definições diversas de dados pessoais para fins de proteção de dados pessoais e para os fins do Marco Civil.

O que se espera é que, a partir das contribuições obtidas por meio da consulta pública, o Ministério da Justiça apresente um texto final que incorpore as alterações e complementações necessárias ao decreto. Do contrário, o Marco Civil da Internet corre o risco de perder sua força em decorrência de uma regulamentação inadequada.

Se em algum blog for postada mensagem ofensiva à honra de alguém, o interessado na responsabilização do autor deverá indicar o URL das páginas em que se encontram os conteúdos consideradas ofensivos. Não compete ao provedor de hospedagem de blogs localizar o conteúdo dito ofensivo por se tratar de questão subjetiva, cabendo ao ofendido individualizar o que lhe interessa e fornecer o URL. Caso contrário, o provedor não poderá garantir a fidelidade dos dados requeridos pelo ofendido.
3. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ, REsp 1274971/RS, Terceira Turma, Relator: Min. João Otávio de Noronha, julgado em 19.3.2015)

André Zonaro Giacchetta e Pamela Gabrielle Meneguetti atuam na Pinheiro Neto Advogados

 

Site: Convergência Digital
Data: 10/03/2016
Hora: ------
Seção: Opinião
Autor:  André Zonaro Giacchetta e Pamela Gabrielle Meneguetti
Foto: ——
Link: http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site&infoid=41867&sid=15