O 'fator digital' nas eleições nos Estados Unidos e Brasil

09/01/2017

Embora o Brasil disponha de um avançado sistema eletrônico de votação desde meados dos anos 90, há algo de novo no ar nas disputas eleitorais que vai muito além das urnas eletrônicas e que foi evidenciado pela recente eleição americana. Trata-­se do que chamaremos de "fator digital"', produto da digitalização da sociedade. É importante entender como a combinação de software, algoritmos, dados e internet influenciou a disputa presidencial, tanto aos seus temas quanto às estratégias dos partidos republicano e democrata ­ e como estes fatores refletirão nas próximas eleições brasileiras.

O surpreendente resultado desta eleição colocou o fator digital na ribalta, ao mesmo tempo em que outros países apresentaram sinais do impacto digital como, por exemplo, no papel das redes sociais no plebiscito sobre o Brexit no Reino Unido ou nas estratégias eleitorais em países populosos como Filipinas e Indonésia.

Privacidade e segurança na internet foram temas que permearam a campanha e os debates na eleição americana. A campanha democrata foi frontalmente atingida por fatos como denúncias sobre o uso de um servidor não oficial de e-­mails pela candidata quando era secretária de Estado, comprometendo a segurança nacional? a acusação formal de que a Rússia teria invadido computadores do partido democrata e o vazamento pelo Wikileaks de e-­mails do seu chefe da campanha. Pode­-se aventar que, diante disso, políticos e equipes de marketing falharam em avaliar e compreender o impacto de novas questões do mundo digital.

A disputa pelos eleitores fez uso maciço das tecnologias digitais ­- as mesmas que hoje conectam bilhões de pessoas, gerando inovação e progresso, mas que podem também ser usadas para a disseminação de informações e notícias falsas ou imprecisas, chegando a afetar princípios básicos da democracia. Na campanha presidencial dos EUA, predominaram na internet estratégias que popularizam novos termos, como bots, trolls ou "pós­-verdade" -­ o que sinaliza o recurso a técnicas de comunicação que privilegiaram o impacto em detrimento do fato e da "verdade".

Dois novos aspectos chamaram a atenção nesta eleição: o primeiro é que as pesquisas tradicionais não anteviram a chance de vitória de Trump, ao passo que análises recentes mostram que redes sociais como Facebook e Twitter apresentavam, nos dias que antecederam as votações, sinais que permitiram a alguns prever corretamente as chances dos dois candidatos, por meio da análise de sentimentos aplicados a posts, tweets ou likes, por exemplo.

Outro ponto é como notícias e informações políticas se disseminam nas redes sociais em momentos altamente polarizados. Estudos têm mostrado que as pessoas são mais propensas a aceitarem notícias falsas quando essas reforçam suas posições e crenças ideológicas. Assim, ganha força o recurso a técnicas que explorem a chamada "racionalidade limitada" do eleitor, que não raro prioriza informações mais salientes em detrimento de conteúdo mais detalhado, e que também valoriza mais as informações negativas ou ofensivas do que as demais.

Esta espécie de fomento à polarização e arrefecimento da comprovação factual das informações recebidas na internet não passou despercebido. A identificação de "câmaras de eco" e de bolhas de informação no acesso à informação pela internet, zonas que funcionam quase como anabolizantes para a disseminação de informação polarizada e com pouco lastro factual, dá vazão para que o marketing político explore estes canais de forma inovadora e pragmática, porém com efeitos capazes de corroer a ordem democrática caso efetivamente afastem a decisão política do modelo de racionalidade e livre arbítrio no qual é fundada.

No Brasil, a inserção do "fator digital" no processo eleitoral é algo que já vem se desenhando com sinais bem concretos, que podem ser pinçados em diversos pontos do espectro ideológico ­- desde, por exemplo, a organização de um movimento de blogueiros progressistas até a constatação de que os protestos de junho de 2013 foram, em boa parte, fruto da emersão de movimentos que vinham operando em redes sociais e ambientes online "abaixo do radar" e aparentemente sob "novas" lideranças e articulação, elementos de um quadro que até hoje desafia o diagnóstico do que efetivamente ocorreu.

O ecossistema de informação sobre o processo eleitoral na internet acaba assumindo uma feição nova, detectável somente com ferramentas de análise de redes e com novos e importantes atores, como portais de informação de proveniência desconhecida ou aparentemente desvinculada de grupos conhecidos. Os "bots" que circulam nas redes sociais são grandes indutores de informações cuja divulgação favorece os grupos que detém seu controle técnico.

A proliferação de "portais" de informação tratada com formato aparentemente jornalístico, porém controlados e manipulados diretamente por interesses específicos e que, muitas vezes, acabam sendo de difícil detecção por se favorecerem do fator "apito de cão" (dog whistle), pelo qual a informação é formatada e apresentada de forma a atingir especificamente um setor da sociedade, falando muito diretamente a este setor e passando praticamente despercebida pelos demais.

Não é surpresa, enfim, que em um ecossistema como este que uma expressão como "pós­verdade" tenha vindo à luz -­ a expressão é definida pelo Urban Dictionary como relacionada a circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos importantes para influenciar a opinião pública do que emoções ou crenças pessoais. Ao mesmo tempo, não é menos verdade que a manipulação da informação por e para interesses específicos não surgiu com a internet. No entanto, todo o processo de informação e desinformação gerado intencionalmente por uma campanha eleitoral acaba sendo amplificado pela internet e personalizado pelas tecnologias digitais. Trata­-se portanto do desafio de se entender o impacto que o fator digital terá nas campanhas de 2018.

Virgilio Almeida, professor visitante na Universidade de Harvard, foi secretário de política de informática no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação no período 2011­2015.

Danilo Doneda é professor da Escola de Direito da UERJ, doutor em Direito Civil e especialista em privacidade e proteção de dados.

 

Fonte: Valor Econômico
Data: 03/01/2017
Hora: 5h
Seção: Opinião
Autor: Virgílio Almeida e Danilo Almeida
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Link: http://www.valor.com.br/opiniao/4823518/o-fator-digital-nas-eleicoes-nos-estados-unidos-e-brasil